Criativa, arrojada, hiperactiva, a Marita sempre nos surpreendeu pela sua inesgotável energia, pelo seu positivismo, capacidade de liderança e de abrir caminhos nunca antes calcorreados.

Nascida em 1967, em Moçambique, Marita Setas Ferro vive agora em Miramar, mas diz ter pouco tempo para usufruir da praia, já que entre a sua actividade como designer na própria marca — Marita Moreno —, a sua mais recente loja, as horas de formação como professora e as várias organizações nas quais está filiada, os seus dias passam num piscar de olhos.

 

Tem, porém, sempre tempo para dois dedos de conversa, muitos planos e umas francas gargalhadas quando nos traz (à CRU) as suas peças, todas por ela desenhadas e produzidas em Portugal. Os sapatos vêm de Felgueiras e as malas de S.João da Madeira, e os artesãos com quem trabalha encontram-se não só aí como noutros pontos do país, como Açores, Viana do Castelo, Alentejo ou Arco de Baúlhe.

Sempre com um pé na escultura e outro no design, pode dizer-se que o estilo da Marita é influenciado pela sua diversificada formação. Fez o curso profissional de Moda do CITEX, a licenciatura e o mestrado em Escultura na FBAUP, duas pós-graduações  — uma em Gestão Cultural das Cidades no ISCTE e outra de DESIGN e MODA na Universidade do Minho. Há longos anos que é fonte de inspiração e de conhecimento para os alunos de pós-graduação de Design e Moda no IPCA em Barcelos, e para artesãos e designers de todo o país. 

Cruzámo-nos com a Marita Moreno em 2012, quando nos escolheu como ponto de venda para a sua marca e, desde então, a nossa relação não só resiste ao tempo, como, a cada ano, se alarga a mais parcerias e colaborações. Hoje em dia, para além do lado comercial e da inestimável amizade, relacionamo-nos também no âmbito da Between Parallels – uma associação para o design e desenvolvimento sustentável, na qual é Presidente da Direcção — e, ainda, através da sociedade estabelecida com a nossa Gestora da Loja CRU, a Virgínia França, na sua concept store recentemente inaugurada no WOW – World of Wine, em Gaia.

Como vieste a tornar-te designer de moda?

Acho que por acaso…queria ser veterinária, depois arquitecta e depois escultora, mas como tive que alterar o meu plano de estudos algumas vezes no meio desta indecisão, acabei por me candidatar ao CITEX depois do 12º ano, pois tinha que melhorar notas. Claro que desenhava vestidos para as bonecas de papel e fazia roupas para as bonecas com os restos dos tecidos da minha mãe e meias de nylon (estranhíssimas e completamente depreciadas na altura). Com 13/14 anos, comecei a achar piada à máquina de costura Singer que a minha mãe comprou a seguir ao 25 de Abril de 1974 e aprendi a coser à máquina, começando a fazer a minha roupa a partir dos 14/15 anos – primeiro copiando os modelos das revistas Burda e, depois dos 17, já fazendo as próprias peças com alterações e em restos de tecidos diferentes que comprava nas lojas em cedofeita. Adorava roupa em segunda mão e, principalmente, chapéus que colecionava.. Assim, no 12º na Soares dos Reis, e caso não entrasse no ensino superior, candidatei-me ao Curso de Design de Moda no Citex e, em Dezembro, entrei – 3 anos de formação muito intensiva, com muito poucas férias. Depois, no último ano, entrei em Escultura nas Belas Artes do Porto. Ou seja, foi um ano absolutamente louco: aulas todos os dias no citex até às 18h, apanhava o autocarro 78 para a Baixa, chegava às 19h (tinha já perdido as aulas práticas de desenho e escultura) e, aí, tinha aulas até às 23h, depois apanhava o autocarro 20 para casa e depois a noite servia para estudar e fazer trabalhos para os dois cursos. No fim-de-semana, tinha aulas sábado de manhã das 8h30 às 13h30 e o resto era para fazer tudo o que não conseguia fazer durante a semana… Era a loucura total, mas consegui fazer as 5 disciplinas que frequentava e depois fui fazendo e trabalhando a desenvolver colecções (a recibos verdes, pois não podia ter um horário completo). Mesmo assim era complicado na altura de colecções, que coincidiam com a altura dos exames. Foi quando decidi ir dar aulas e fazer todo o curso de escultura a ensinar e a aprender. Adorei os tempos que estive nas Belas Artes, com os meus colegas da turma nocturna e, mais tarde, nas práticas de madeira, metais e pedra. Desta forma, estive sempre ligada ao design de moda, não como profissional do sector, mas como professora e autora de guarda-roupas e cenários. Nunca senti necessidade de criar uma marca, só aconteceu mesmo em 2008, quando fui fazer a pós-graduação de Design e Moda na Universidade do Minho, percebi que tinha o necessário para criar uma marca e de que forma! Foi, então, quando surgiu o projecto inicial da criação da marca.

És senhora ou escrava do teu tempo?

Que pergunta mais matreira! Acho que sou companheira do meu tempo… trabalho sempre muito, com muita intensidade e também com muito prazer. Sou a verdadeira workaholic e sempre considerei que o trabalho que fazemos deve ser uma fonte de grande prazer e grande respeito – o nosso legado como seres humanos, o que nos distingue dos animais mais inteligentes é a nossa capacidade de construir um futuro que escolhemos, através do nosso trabalho. Desde sempre, fui muito independente, casei-me tarde e já com uma forma de estar em que a parte profissional era fundamental na minha vida. Com o nascimento da minha filha, em outubro de 2001, decidi trabalhar em part-time (dava aulas, fazia guarda-roupas para teatro, ballet e ópera e era dirigente associativa) para ficar com tempo para acompanhar a infância dos meus filhos. Aí, trabalhei mais dois anos a dar aulas, e depois optei por ter empresa própria e desenvolver a minha actividade profissional, podendo assim gerir melhor o meu tempo para o nascimento do meu filho, em 2003, e para o crescimento dos meus filhos. Os meus filhos só entraram para o infantário com 3 anos e o meu marido tinha uma actividade profissional muito intensa e ocupada, ficando assim eu na retaguarda da família. Mas, desde 2015 (ano que fiz o rebranding da marca e passei para sapatos e malas) foi muito difícil coordenar tudo – família e trabalho, principalmente pela exigência de idas para o estrangeiro com muita frequência, e aí ficou o meu marido na retaguarda da família, acompanhando mais a educação dos nossos filhos. Como pertencente à cultura judaico-cristã dos países do sul da europa, e como mãe (que em Portugal ainda é a que fica em casa e toma conta das crianças), a minha autonomia e independência profissional foram vistas como um certo “abandono do lar” e não como uma capacidade profissional de chegar mais longe e atingir objectivos empresariais. A parte mais difícil e complicada quando nos dizem “os miúdos têm tido muitas saudades tuas” é que nos sentimos com muita culpa por termos uma actividade profissional activa, mesmo a pressão externa de familiares próximos influência, muitas vezes a dinâmica interna da família… felizmente o meu marido e companheiro sempre me deu todo o apoio e força para fazer e trabalhar naquilo que acreditava ser o meu futuro profissional. Ainda há muito a mudar na forma como se vê o conceito de família… 

Casa, escritório, fábricas, oficina?… Onde passas as tuas horas de criatividade e produtividade?

Não tenho uma rotina, pois esta depende se estamos em altura de criar, desenvolver ou produzir colecções. Quando estou a criar, passo a maior parte das horas no meu Atelier, um espaço próprio, em casa onde tenho os meus livros, as minhas revistas de tendências, os meus materiais para inspiração e depois vou muito a fornecedores, pesquiso e vejo novos materiais. Quando estou em desenvolvimento, a maior parte do tempo é a acompanhar a modelação e a produção de protótipos, ou seja, no modelista e na fábrica a resolver todos os problemas que surjam, desde falta de material até ao fio para fazer os cordões à cor. Na produção, passo quase o dia todo nas fábricas para acompanhar, ver e detectar todos os defeitos e problemas que possam existir. No meio disto, há que responder aos emails, tratar dos assuntos das feiras internacionais, responder a entrevistas e fazer textos de opinião, organizar as sessões fotográficas, fazer preços, gerir a empresa… E desenvolver protótipos de malas e mochilas com o sr. Cruz, fazer pesquisa, dar aulas, e ter tempo à noite para tratar dos assuntos da Between Parallels, ou seja, nunca há monotonia… e o dia precisava de ter mais umas horas.

Copyrights, royaties, desenhos, patentes, marcas… navegas normalmente nestas águas?

Não é uma área que me seja muito familiar, embora tenha feito registo da marca e de desenhos de sapatos. O meu trabalho é um trabalho criativo e de gestão da empresa, que tem custos fixos e despesas a pagar: impostos, ordenados, fotografias, catálogos, espaços de exposição, etc,  por isso há o valor intrínseco de cada produto (material, mão de obra e despesas várias) e o valor que tem que ser indexado a todos os produtos, que diz respeito a estas despesas indiretas e que possa ajudar a pagar a todos este bolo, para que a empresa ainda possa ter lucro.

Atrás de uma grande mulher está sempre…quem?

O Francisco, o meu grande companheiro de vida (que me atura e que sempre me dá imenso apoio) e a Ana e o Pedro – dois filhos incríveis (assim o acho já que sou mãe-galinha). Embora seja a pessoa mais difícil de aturar em casa, pois a minha cabeça nunca pára e estou sempre a arranjar mais trabalho para fazer, o que muitas vezes torna tudo difícil de conciliar. Tenho 3 funcionários em duas empresas (a de design e a de consultoria) que são peças fundamentais na organização de tudo o que faço profissionalmente. Recentemente com a abertura da loja da marca, iniciei uma nova relação empresarial e laboral com a Virgínia França e a Juliana. Trabalho bem com muita gente, mas sou muito exigente, chata no que diz respeito a pormenores e por vezes muito impaciente – acho que as pessoas me lêem o pensamento e que todos já sabem o que eu quero… ou seja não é muito fácil trabalhar comigo a não ser que estejam a 300 à hora como eu ando sempre… ahahah

Como é para ti ser empreendedor no Porto / em Portugal?

É muito complicado… mesmo! Sou, por natureza, empreendedora (essa coisa da empresária é um pouco dúbia…), ou seja tenho um espírito empreendedor, de construir sempre qualquer coisa de novo, de positivo, de bom, para enriquecer a sociedade com ideias e projectos. Em Portugal, é muito difícil fazermos isto e sermos apoiados devidamente – quando falo devidamente não é só uma questão financeira, é uma questão de internacionalização, de nos dizerem que as nossas ideias são excelentes ou péssimas, que caminhos devemos tomar ou esquecer e pensar tudo de novo. Esta seriedade, profissionalismo e frontalidade na avaliação de projectos novos e diferentes e nos apoios dados ao empreendedorismo são mesmo muito importantes, pois é desta forma que nós conseguimos chegar à qualidade e  excelência. Só para dar um exemplo: não existem apoios para os registos de marcas e patentes a nível internacional (na área da moda e do design) e por isso são impossíveis para uma micro-empresa o fazer; outro exemplo é a falta de apoios dados a concursos internacionais de design, cujas inscrições e participações são altas para as micro-empresas – no meu caso tenho estado a ser nomeada para vários (Alemanha e EUA), ou seja, já fui seleccionada pela organização e tenho que pensar se consigo inscrever a empresa ou não – este tipo de concursos dão uma visibilidade enorme ao país e às competências do design português e, muitas vezes, perdem-se oportunidades de dar a conhecer projectos incríveis e vencedores, pois não temos uma política de apoio a projectos inovadores na área do design e da sustentabilidade. Já fui questionada muitas vezes na Alemanha e em Espanha qual o apoio que o governo me dava para ter uma marca sustentável…

E depois, existe a questão de só os empreendedores de I&T serem os que existem para serem apoiados devidamente – se as instituições apoiassem com os valores e da forma como apoiam os empreendedores na área do artesanato, do design sustentável, assim teríamos paridade nos apoios.

que camisolas vestes com entusiasmo?

Associações, artesanato e design português, sustentabilidade… 

Desde 1996, pertenço a associações na área artística, cultural, artesanal, design, pois acredito profundamente que juntos conseguimos muito mais e está provado que conseguimos! só temos que ser um pouco menos egoístas, mais solidários, termos coragem e deixarmos os medos de lado.

Quais são as tuas principais aspirações para a marca Marita Moreno?

A marca apareceu em 2008, devido à necessidade de dar valor ao património e artesanato português em peças de design contemporâneas do dia-a-dia, feitas em Portugal com materiais portugueses. Este princípio básico de responsabilidade, ética e sustentabilidade manteve-se e foi evoluindo cada vez mais. O objectivo era que a marca fosse uma referência a nível nacional e internacional e que levasse portugueses a fazerem o mesmo e darem valor à nossa enorme riqueza patrimonial e artesanal e isso tem acontecido, o que me deixa muito feliz! Estamos no bom caminho de sermos reconhecidos a nível internacional como uma marca de referência – daí as sucessivas nomeações para prémios internacionais. 

A nível nacional, também estamos muito bem referenciados, mas por vezes ainda temos um pouco aquele pensamento que o que vem de fora é melhor e com mais garantias de qualidade… Por exemplo, em Espanha, tentam sempre que eu seja espanhola de alguma maneira (nome, pais, avós, vizinha, ibérica), o que é incrível e sinto-me muito bem vinda e sei que eles adoram a nossa marca. A pandemia e a forma como os portugueses responderam ao apoio dos negócios locais e portugueses foi fantástica e acho que se percebeu muito bem que “o que é nacional é excelente”, o que de alguma forma veio mudar um pouco o “mindset” geral.

Neste momento abrimos uma loja, que pensamos poder ajudar imenso a dar mais força à marca e à expansibilidade internacional (para outros continentes que não a Europa) – já deveria ter acontecido em 2020 mas foi adiada para 2022. Por isso, o que aspiro para a marca é que cresça e se torne uma referência em muitos países (na europa e a nível internacional) para que mais pessoas venham a fazer também marcas éticas e sustentáveis e possamos, desta forma, construir um futuro melhor e mais sustentável.

quem é a Marita quando não está a trabalhar?

Ahahah… raramente não estou a trabalhar, pois tenho sempre tanto prazer no que faço que nem dou conta que estou sempre focada no meu trabalho. Mas gosto de fazer outras coisas 🙂 Adoro fotografia e, em especial, a parte da composição da imagem e captação do momento único que o nosso olho e cérebro viram naquele instante e que não se vai conseguir repetir – durante muitos anos andava com a máquina fotográfica atrás, com rolo a P/B e fazia a ampliação dos negativos (tinha um ampliador P/B). 

Adoro conhecer cidades novas e visitar museus (é mesmo uma grande paixão) – aquilo que vemos que o homem fez e criou dá-nos uma noção enorme da humanidade e da evolução que todos nós transportamos no nosso ADN e, por vezes, nem percebemos que os museus nos dão essa percepção e esse conhecimento.

Gosto muito de ler, mas infelizmente nos últimos anos não tenho tido tempo para ler muita coisa para além de livros técnicos, profissionais ou relacionados com o design e a sustentabilidade. Tenho uma colecção de livros infantis com ilustrações lindas – comprava para os meus filhos e depois passei a comprar para mim.

Se pudesse, fazia muito mais escultura em couro – permite que o meu cérebro crie sem condicionalismos ou imposições e leva-me para longe. 

Para verdadeiramente descontrair, faço crochet e malha em grande escala para fazer “soft sculptures”.

quais foram as maiores lições que aprendeste, nestes últimos anos enquanto empreendedora?

Gostaria de saber muita coisa antes de começar e de montar a marca, mas, acima de tudo, dicas para evitar cometer alguns erros desnecessários… outros erros, temos mesmo que os cometer e crescer com eles! Acho que a maior dica seria na parte do projecto de internacionalização: teria feito de forma completamente diferente, com menos investimento e outra calendarização, com prioridades que só depois de termos o projecto finalizado é que percebemos, um maior conhecimento da área comercial e circuitos comerciais internacionais. E depois, o mais importante: manter-nos sempre fiéis ao que somos, ao que fazemos e no que acreditamos!

CRU Spotlight é um rubrica de pequenas entrevistas a pessoas da comunidade CRU, com foco em aspectos da sua vida profissional como independentes no sector das Indústrias Criativas.

Texto: Tânia Santos Edição: Rossana Mendes Fonseca Fotografias: Marita Moreno